Na prática clínica,
com freqüência, o motivo explícito que leva o
cliente à consulta nem sempre é o motivo real ou,
pelo menos,
o mais importante. É necessário estar atento para
decodificar e, no momento oportuno, responder aos motivos implícitos.
Esta capacidade é um fator importante no bom atendimento.
Há clientes que chegam à consulta com queixas vagas
e imprecisas.
São “umas dores”, “cansaço permanente”,
“mal-estar geral”, “desânimo”, “pressão
no peito”. E por meio dessas queixas imprecisas,
expressam as dores da vida. Nesses casos, muitas vezes, os sintomas
falam. E para entender essa linguagem dos sintomas é preciso
entender a história da doença na história da
pessoa e no contexto em que ela vive.
A formação de um bom médico se assenta no clássico
tripé: conhecimentos, habilidades e atitudes. O conhecimento
se organiza a
partir de informações. A habilidade depende do treinamento.
E a atitude está diretamente relacionada à formação
e identidade
psicológicas. Nas palavras de Mello Filho (1986, p. 84),
o resultado da prática médica é, de forma sintética,
função de nossa
capacitação técnica e da possibilidade de fazermos
um bom relacionamento com nosso paciente.
Abram Eksterman compreende a Psicologia Médica, diante do
fato clínico, através da “Teoria do Observador”.
Em seu entendimento,
o fato clínico é, ao mesmo tempo, o objeto da observação
médica e objeto de ação médica. Para
ser submetido à ação médica,
o fato clínico deve ser apreciado não apenas como
objeto isolado, mas como objeto em interação com o
próprio médico.
Ainda, o conceito de “pessoa” só existe na interação
humana. A natureza não fabrica pessoas. A pessoa é
uma concepção de cultura
e produto do homem na sua relação com o outro. Assim,
ao se suprimir o conhecimento da relação com o doente,
suprime-se a “pessoa” da prática médica
(Perestrello, 1989). É preciso considerar que as mãos
e as palavras possuem também
potencial como instrumentos terapêuticos (Balint, 1988).
Hipócrates é considerado o pai da Medicina não
apenas porque aplicou a ela as especulações dos filósofos,
mas também e
principalmente porque as combinava com observações
feitas à beira da cama do doente, a quem escutava com atenção.
Segundo o médico inglês Richard Gordon, uma de suas
maiores contribuições foi mostrar que a aplicação
prática da medicina
clínica resulta apenas da observação inteligente:
“Como o que importa é o homem doente, não as
teorias sobre a doença,
a atenção deve estar voltada para o paciente, bem
como para o ambiente que o cerca” (Ismael,
J. C., 2002, p. 27).
Há necessidade de se refletir a respeito de tantas especializações
e sofisticações da Medicina como ciência e sua
real utilização
frente às necessidades sociais e humanas da população.
Neste novo século, as desigualdades sociais apresentam-se
cada vez mais
perversas, e as comunidades necessitam de médicos comprometidos
com a realidade social, econômica, cultural e humana de sua
clientela, pois esta adoece inserida em seu contexto social, em
meio a sua situação econômica e cultural, trazendo
juntamente
à sua doença características pessoais: o doente
é o Ser-no-mundo” (Branco, 2002).
Dessa forma, a doença entende-se como um “adoecer”:
um processo histórico-biológico desenvolvido em circunstâncias
adversas.
Assim, diagnosticar uma doença é mais que identificar
um estado mórbido; é, sobretudo, detectar um modo
particular de existir,
um existir doente (Perestrello, 1989). Segundo Bougnoux, citado
por Belmont (2002), os médicos precisam se preocupar menos
em ser sábios e “curadores” de doenças,
e perseguir, cada vez mais, o modelo Winnicottiano do médico
“cuidador”: profissional que
toma seu paciente por inteiro, dando-lhe um atendimento holístico,
e não só se comprometendo com a cura de sua doença,
mas capaz de exercer seus saberes integrados à realidade
do Outro. No dizer de Balint (1988), a pessoa do médico pode
ser um
medicamento poderoso e eficaz. Necessário se torna, pois,
que o profissional saiba receitar-se adequadamente.
Conclui-se que a medicina do doente não exclui a medicina
da doença, mas sim, a amplia no sentido de um atendimento
holístico.
Entende-se que a consulta é a base da relação
terapêutica. Ela permite, através da comunicação,
a realização do ato terapêutico,
pelo qual o profissional ouve as queixas do cliente, toma sua história
pessoal, analisa os sintomas, pesquisa os sinais, faz o
diagnóstico e estabelece a conduta. Logo, o êxito do
ato terapêutico depende, na prática, da comunicação
estabelecida
durante a consulta.
Barbara
Macedo Durão Nisenbaum
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